sexta-feira, 29 de agosto de 2008

(( O PREÇO DA DIGNIDADE ))

Um dos primeiros clientes da pequena agência que montei com uma amiga, a Mutirão de Profissionais de Propaganda, foi a Ática, a maior editora de livros didáticos do país, para quem fizemos anúncios memoráveis. Foi uma relação de muito respeito, amor e confiança, mas como não há amor que dure sempre, a editora foi vendida e então, o celebre “agora sob nova direção”, parou tudo. Nunca mais se viu um anúncio com a sua marca.

Em compensação, nossa experiência com esse tipo de cliente fez com que outra editora, sabendo que já não estávamos com a grande concorrente, nos procurasse para entregar sua conta. Foi uma negociação dificílima: havia um diretor que não conversava em outros termos que não fosse finanças, custos, descontos, etc etc. Era reunião pra lá, reunião pra cá e nada se definia, porque o homem achava que não deviam pagar criação e com muito favor, aceitariam trabalhar conosco se baixássemos nossos honorários de veiculação em 50%, ou mais. É claro que não topamos, e nem toparíamos: pela falta de ética, pela falta de vergonha, por respeito ao nosso ofício e finalmente, porque foram eles que “encostaram o umbigo em nosso balcão” e não, nós no deles.

Acho que pelo fato de nos terem procurado, somente por isso, o homem resolveu aceitar nossas condições e nos encaminhou para o setor de vendas que, também respondia pela propaganda e marketing. Como primeiro trabalho, nos passaram uma urgente lição de casa: um anúncio em homenagem aos escritores no Dia do Escritor. O briefing, que nós até ajudamos a elaborar, era simples e objetivo: “é preciso valorizar o Escritor, porque é daí que vem o nosso ganha pão, como é também daí que vem a cultura, a educação e tudo o mais..”

Criamos um ótimo anúncio (modéstia à parte), cujo titulo era um trecho do poema O livro e a América” de Castro Alves.
“Oh bendito o que semeia, livros, livros a mancheias e manda o povo pensar... "

Brilhante idéia, porque semear livros a mancheias e fazer o povo pensar, além de ser um dever de cada um é o verdadeiro papel do escritor, dos livreiros e das editoras... Conscientes disso e com toda aquela empolgação de agência nova fomos apresentar o trabalho para o pessoal de vendas. Eles vibraram com a peça mas tiveram que chamar um diretor para ajudá-los tomar a decisão e não deu outra. Quem veio? Aquela figura tosca que queria cortar nossos honorários. Era o homem do dinheiro e também da palavra final.

O que não sabíamos era que ali estava um racista daqueles de filme da Ku Klux Klan, anti-semita e defensor intransigente do Reich, do Santo Ofício, do Apartheid, anti comunista até a medula, era quem diria se a empresa faria ou não o anúncio. Após nossa apresentação, durante a qual ele não moveu um único músculo da dura face, pediu para ver o texto e, dando uma lida bem superficial, com uma expressão iradíssima e a voz rouca de ódio, sentenciou: “esse poeta de merda, proxeneta e comunista, dava o rabo para os negros e comia as suas negras, por isso os defendia com tanta convicção..." (Vale lembrar que o homem era mulato claro beirando a branco). "Nossa empresa jamais assinará um anúncio como este, enquanto eu for vivo e diretor dela. Façam coisa melhor, se quiserem nossa conta".

Nossa frustração foi grande. Só não foi maior, porque aproveitamos a oportunidade e, descendo ao seu nível, mandamos que enfiasse sua editora no rabo, e nos despedimos em ritmo de Castro Alves:

"Saiba vossa senhoria, que com sua miopia,
fala sobre o que não viu...
pois que poeta safado,
de merda e pro xeneta é a puta que pariu...”

Mas o que deve teve tê-lo deixado preocupado mesmo, foi que antes do versinho o alertamos para o fato de que seu cabelo e outros de seus traços mostravam, de forma clara e cristalina, sua condição de descendente, quisesse ele ou não, do nobre povo negro, ao qual o grande poeta dedicou o seu verbo, sua verve e sua vida.

Perdemos o cliente, mas mantivemos a dignidade.

Humberto Mendes
Diretor Executivo da Fenapro (Federação Nacional das Agências de Propaganda)

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